domingo, 29 de agosto de 2010

Democracia Participativa, Futuro do Sistema Democrático

Democracia Participativa,

Futuro do Sistema Democrático





Os seres humanos inteligentes sempre acham que vivem numa época singular, cheia de acontecimentos únicos e marcantes. Há um pouco de verdade nessa percepção, mas muita dessa verdade também é ofuscada por uma sobrevalorização da diferença em relação a épocas passadas. Em termos de conteúdo universal os dilemas das sociedades humanas muitas vezes são repetitivos. Por exemplo, o alargamento da democracia para além dos eleitos cidadãos é um tema que ainda não se esgotou desde a Grécia antiga. Os debates recentes sobre a democracia representativa mostram que nem o sufrágio universal resolveu a questão dos direitos políticos e da plena cidadania.


A democracia participativa é a salvação do sistema democrático em Cabo Verde e no mundo.
Que o cidadão apenas vote e existe quem entenda que, se o voto for livre, já está, ipso facto, configurada a democracia participativa, está se confundindo com a própria democracia representativa.
Com efeito, "o conceito de participação política consagrou-se nas formações liberal democráticas em referência à participação institucional, isto é, aquela voltada à tomada de decisões de poder, por meio de representantes escolhidos pelo sistema eleitoral" (Cotta,


1979, apud Doimo, 1995:34).

Os defensores da democracia representativa formal vão mais além, chegando a entender a participação directa da cidadania como negativa para a consolidação da democracia (Lamounier, 1991; Sartori; 1994, apud Silvab, 1997:75). Mas, para os que assim não pensam, só há participação política efectiva quando existe democracia participativa, quando o cidadão pode "apresentar e debater propostas, deliberar sobre elas e, sobretudo, mudar o curso da acção estabelecida pelas forças constituídas e formular cursos de acção alternativas" (Filla e Battini, 1993). Ou seja, mais precisamente, sempre que houver formas de o cidadão participar, decidindo e (ou) opinando, directamente, ou de forma indirecta, por meio de entidades que integra, a respeito de uma gama diversificada de instituições, no âmbito da sociedade (famílias, empresas, mídia, clubes, escolas, etc) ou na esfera pública (orçamento participativo, conselhos de direitos, ouvidorias, etc).
Fica claro, portanto, que a democracia participativa, tal como a acabamos de definir, não abrange a democracia representativa. Embora possa perfeitamente coexistir com ela, como aliás ocorre no Brasil. Nas palavras de Silvaa: "os constituintes optaram por um modelo de democracia representativa, com temperos de princípios e institutos de participação directa do cidadão no processo decisório governamental". (l995: 145).
Por outro lado, é de se observar o envelhecimento precoce de teorias sobre a democracia, e, mais especificamente, da sua modalidade mais destacada: a directa.
Transformações deste porte impõem uma redefinição do conceito de democracia participativa e de suas modalidades, assim como uma nova compreensão do seu significado político.

Com efeito, em que pese diferenças profundas entre as concepções de democracia participativa de teóricos de destaque como Macpherson, Bobbio ou Poulantzas, suas análises têm em comum ou a destacada referência à Comuna de Paris e ao modelo soviético, e (ou) a associação entre mecanismos de democracia directa com a luta pela implantação do socialismo. Ora, o desmoronamento do Muro de Berlim tornou ultrapassadas essas teorias. Macpherson, por exemplo, considerava o regime soviético uma forma de institucionalização, ainda que falha, da democracia directa. Mesmo se o estudo do carácter dos regimes ditos socialistas está longe de ter avançado, poucos sustentariam hoje que eles tenham configurado algum tipo de democracia. A fortiori, muito pouco teriam a ver actuais experiências de democracia directa com os modelos conceituais formulados por Macpherson. No seu livro A Democracia Liberal, este renomado cientista político canadense mostra-se favorável à democracia participativa, combinada com a representativa: "um sistema piramidal com democracia directa na base e democracia por delegação em cada nível depois dessa base" (Macpherson, 1977:110). Trata-se de um "sistema de delegação sequenciado para cima, com a organização de conselhos de cidades, de região, até o topo da pirâmide, com a organização de um conselho nacional.". Este sistema piramidal, de acordo com Macpherson, "existia, mesmo que no papel, na União Soviética."
Todavia, no caso de uma democracia representativa, pluripartidária, "seria mantida a actual estrutura de governo e os partidos operariam com o estilo de participação piramidal, passando a haver uma democracia participativa configurada pela democracia directa na base em convívio com a democracia representativa a cada nível sequencial superior". (apud Brandão, 1997:120).


Em seu livro sobre "Ascensão e Queda da Justiça Económica", Macpherson se rende às dificuldades para a construção de uma democracia participativa nos moldes das democracias ocidentais, estimando que os grupos de pressão organizados na sociedade civil, assim como os partidos políticos, não teriam condições de harmonizar a lógica interna de seu funcionamento e (ou) a defesa de seus interesses particulares, com o envolvimento de seus integrantes em práticas participativas voltadas para o bem comum. (Macpherson, 1991).
Tendo como referência a democracia directa formalmente existente na URSS, as formulações de Macpherson sobre o tema mostram-se bastante desfasadas da democracia participativa na actualidade. Em particular da que floresce no Brasil, profundamente distante do modelo soviético e caracterizada pela rica diversidade de suas experiências participativas.

No que diz respeito a Bobbio, suas concepções são largamente condicionadas pelo rescaldo da Guerra Fria e, em particular, pelo contexto de radicalização da vida política italiana com a acção dos grupos terroristas nos anos setenta, que culminou com o assassinato do premier Aldo Moro. Preocupa-se Bobbio com uma democracia directa que viesse a exigir dos cidadãos a sua "participação em todas as decisões a eles pertinentes". Temia que se configurasse, senão o "homem total", de Marx, o "cidadão total" de Rousseau: "a outra face igualmente ameaçadora do Estado total".


Segundo Bobbio, os partidários da democracia directa, conforme a "tradição do pensamento socialista", a colocam em oposição à democracia representativa, "considerada como a ideologia própria da burguesia mais avançada, como a ideologia ‘burguesa’ da democracia. A democracia directa, assim concebida, tem como característica o mandato imperativo, na tradição marxista e leninista, e a representação de interesses, ou orgânica, "característica do pensamento inglês do século passado".


Na verdade, Bobbio considera esse género de democracia "anfíbio", sendo que a democracia directa, no sentido próprio da palavra, seria apenas a "assembleia dos cidadãos deliberantes sem intermediários e o referendum" (Bobbio, 1992:42, 43, 48, 49, 52 e 53).


Segundo este raciocínio, o único modus operandi da democracia directa - a ser moderadamente utilizado - é o plebiscito, face à inexequibilidade de assembleias como a acima referida. Razão pela qual, para Bobbio, só restaria como espaço para aprimoramento democrático, via práticas participativas, a esfera das relações sociais, onde o protagonista não é o cidadão, mas sim "o indivíduo "... considerado na variedade de seus status e de seus papéis específicos, por exemplo o de empresário, de trabalhador, de cônjuge, de professor, de estudante, até mesmo de pais de estudante..."
Conclui então Bobbio que o processo de democratização consiste, não na passagem da democracia representativa para a directa, mas na ocupação, pelas formas ainda tradicionais da democracia, como é a representativa, de espaços até agora dominados por organizações de tipo hierárquico e burocrático. "Tudo pode ser resumido na seguinte fórmula: da democratização do Estado à democratização da sociedade" (Bobbio, 1992:54-55).

É fácil constatar que as teorizações de Bobbio sobre a democracia directa tenham pouco a ver com o contexto e os institutos em que se materializa a democracia participativa no Brasil. Primo, esta última não foi instituída, como veremos adiante, em antagonismo com a democracia representativa, nem como instrumento de implantação de uma ordem socialista revolucionária. Tarso Genro, principal mentor da mais importante experiência de democracia directa do Brasil – o Orçamento Participativo de Porto Alegre – esclarece, a esse respeito, que "dar força cogente ao controle público não-estatal significa aprofundar o regime democrático e dar consequência `a combinação da democracia representativa com a democracia directa, prevista no art. 1º, par. Único, da própria Constituição. Esta combinação ‘civiliza’ o Estado, gerando um controle externo, capaz de limitar sua lógica corporativa, ou seu atrelamento a interesses puramente privados." (Genro e Genoino, l995). Secundo, predomina amplamente no Brasil, no âmbito da democracia participativa, a sua modalidade semi-indireta, como é o caso dos diferentes conselhos (de saúde, da criança e do adolescente, dos direitos humanos, etc). Nestes, com efeito, o cidadão não participa pessoalmente da gestão pública, ou de sua fiscalização, mas através de representantes da entidade que integra - os quais detêm, via de regra, mandato fixo.

Tertius, a representação de interesses, tão combatida por Bobbio, existe apenas em alguns colegiados. Predomina a presença de organizações da sociedade civil voltadas para o interesse público, cultivando, nesse processo, uma postura crítica em relação ao corporativismo.

No caso do Orçamento Participativo de Porto Alegre, a crítica ao corporativismo chega a se constituir no leitmotiv de Tarso Genro - exactamente o oposto do que temia Bobbio.


A teoria de Nicos Poulantzas sobre a democracia directa distingue-se ideologicamente das de Bobbio e de Macpherson pelo seu carácter marxista e revolucionário. Por essa razão, e pelo fato de ter sido formulada nos anos setenta, a democracia directa de Poulantzas é concebida, antes de tudo, como um instrumento de luta contra o capitalismo. Embora esse autor inove, pretendendo compatibilizar democracia directa com democracia participativa. Ocorre que, na perspectiva de Poulantzas, a disseminação da democracia directa, sob a forma de "focos embrionários de poder popular" se confundiria com o desabrochar das instituições socialistas. Dessarte, "este longo processo de tomada do poder pela via democrática, rumo ao socialismo, consiste, essencialmente, em reforçar e coordenar os centros de resistência difusos de que as massas dispõem no âmbito do aparelho de Estado, criando e desenvolvendo novos, de tal forma que estes centros se tornem, no terreno estratégico que é o Estado, os centros efectivos do poder real. "Não se trata de reformas progressivas, mas, claramente, de um processo de rupturas efectivas cujo ponto culminante - e sempre existirá forçosamente um - reside na mudança de correlação de forças em favor das massas populares no terreno estratégico do Estado" (Poulantzas, 1978:285-286). Em outras palavras, a transição do capitalismo para o socialismo consiste em "impulsionar a proliferação de centros de democracia directa, a partir das lutas populares que extravasam sempre, e de muito, o Estado". Enquanto que "limitar-se ao terreno do Estado, por muito que se adopte uma estratégia denominada de rupturista, equivale a deslizar-se insensivelmente para a social-democracia". (Poulantzas, 1983:75).


Portanto, "No processo de ruptura, "a função dos organismos paralelos será a de polarizar uma larga fracção do aparelho de Estado pelo movimento popular, e estes em aliança, enfrentarão os sectores reaccionários do aparelho do Estado apoiados pelas classes dominantes contra-revolucionárias".


A participação é uma prática de aprofundamento da democracia e como tal poderá ou não concorrer para abalar o capitalismo. Dependendo da correlação de forças existentes, a luta pela democracia participativa aprimorará um regime de capitalismo democrático, ou favorecerá a sua progressiva superação.


Concluindo diríamos, se se quiser salvar o sistema político democrático ele tem que ser participativo ou entrará em declínio nos próximos tempos.



Sem comentários:

Enviar um comentário